
Jota Mobança
Jota Mobança (1991) é uma bicha não binária, nascida e criada no Nordeste do Brasil, que escreve, performa e faz estudos acadêmicos em torno das relações entre monstruosidade e humanidade, estudos kuir, giros descoloniais, interseccionalidade política, justiça anti-colonial, redistribuição da violência, ficção visionária e tensões entre ética, estética, arte e política nas produções de conhecimentos do sul-do-sul globalizado.
"Pode um cu mestiço falar?" é um título de um texto seu em que se apropriava o título de um ensaio da filósofa indiana Gayatri Spivak, "Podem os subalternos falar?". A resposta, provocadora, era não. Jota Mombaça não só escreve como faz performance das suas ideias, trabalhando em torno das relações entre monstruosidade e humanidade, "estudos kuir", justiça anti-colonial, redistribuição da violência, ficção visionária e tensões entre arte e política nas produções de conhecimentos do "Sul-do-Sul globalizado"
"Não há lutas unidimensionais porque não há vidas unidimensionais"
Diferenças de origens de classe, em que os combates estiveram associados a uma classe média-alta urbana que protegia o privilégio do acesso à universidade. Diferenças de horizontes teóricos –? o marxismo era a narrativa de fundo e o "povo" era a categoria abstrata para a qual tudo se remetia – e de práticas culturais – a poesia era a arma central para escapar à censura. O corpo de Jota Mombaça é, por si só, um manifesto e torna evidente o que entretanto mudou. Encontrá-la é ter a sensação de que algo tem andado invisível no debate público, nas vozes e nos corpos autorizados a falar (ela utilizará a noção de "lugar da fala" para situar e questionar em permanência quem fala, de que posição e para quem).
Se é evidente que Jota Mombaça deve muito aos estudos queer e pós-coloniais das últimas décadas, e tratando-se de autores na maior parte dos casos ainda por traduzir, será então ela que vai "entortar" os conceitos e adaptá-los à sua experiência de um país ex-colonizado. Assim, queer tornar-se-á cuir, e Jota identifica práticas populares de desobediência sexual e de identidade género que já existiam (como os terreiros de candomblé queto, em que participantes conjugam códigos femininos e masculinos) muito antes de serem teorizados pela categoria global do queer.
Jota dispara: "A antropofagia foi uma lógica de devoração e eu pratico uma lógica de vómito. O poeta Oswald de Andrade [1890-1954] integra ainda uma forma de colonialismo interno, trata-se de uma elite branca, com acesso exclusivo à arte e com uma imagem idealizada do sujeito racializado. Há uma ficção da democracia racial, quando a negritude foi sendo aniquilada pela pobreza e miscigenação. A filósofa e psicanalista Suely Rolnik, investigadora em São Paulo, lembra que o capitalismo financeiro devora tudo e pratica uma antropofagia zombie, criando uma hiper-flexibilidade do sujeito e impedindo subjetividades – para ela não são apenas necessárias resistências macropolíticas mas também uma micropolítica do desejo, porque de outra forma se reproduz o inconsciente colonizado pelo capitalismo e volta tudo ao mesmo lugar. "Há que desenvolver uma ética própria, uma política do cuidado, recusando o banquete que nos é imposto. Comer aquilo que nos potencializa e vomitar o projeto genocida cristão do corpo colonizado".
Partindo da impressão de que o seu trabalho é uma fuga para se "salvar de algo do qual não posso ser salva" e fazendo por escapar às estatísticas dos corpos negros queer confrontados com a violência ou a morte (numa das suas tatuagens lê-se "A gente combinamos de não morrer", citando uma das autoras brasileiras que mais admira, Conceição Evaristo, nascida numa favela de Belo Horizonte).
E ela recusa-se a estabelecer uma narrativa heróica sobre as lutas destes corpos e vidas quebrados para evitar que isso se torne a condição para ter acesso ao mundo da arte. "O que não quer dizer que eu entre num fetichismo do-it-yourself, o meu trabalho está atravessado por instituições".